Os olhos do amor humano


Silvia Kuntz
, de Roma/IT, formada em Jornalismo pelo Mackenzie e Teologia pela Pontificia Università della Santa Croce. Faz parte do comitê organizativo e departamento de comunicação do Univ Congress. Entre em contato clicando aqui.
No trajeto da universidade até a minha casa, tenho que subir as escadarias da Piazza di Spagna e me sentir um pouco turista, quase todos os dias. Gosto de prestar atenção nas pessoas que se arriscam a subi-las, sair sem querer em algumas fotos – que se espalharão pelo mundo – e, sempre, admirar a igreja Trinità dei Monti, que completa o cartão postal em questão.

+ Ser ou não ser não está em questão

Há alguns dias, resolvi adivinhar quais casais ali estavam em lua de mel. De que país seriam e que língua falariam. No meio do meu jogo, um desses casais me interrompeu, dando respostas a todas as minhas curiosidades. Me perguntaram, em espanhol (muita gente acha que sou mexicana), se eu poderia tirar uma foto deles.

Quando o julgamento leva à reflexão

Tinham acabado de se casar e queriam enviar a foto para a mãe dela, na Espanha, comprovando que haviam passado pela praça que tem o nome de seu país. Comecei a enquadrá-los na tela e… “o que viram um no outro?”. De repente, percebi que estava julgando aqueles recém casados.

A pergunta do meu julgamento foi o ponto de partida do meu pensamento durante o resto do caminho

Devolvi o celular, desejei felicidades e boa viagem. A pergunta do meu julgamento foi o ponto de partida do meu pensamento durante o resto do caminho. Geralmente, quando estou andando sozinha, falo interiormente com Deus, em vez de, por exemplo, ensaiar conversas que nunca vão acontecer. Ou imaginar histórias fantásticas das quais sou protagonista.

Conversas particulares com Deus

Desde que descobri que Deus é um ser pessoal e não uma energia, ou força, relaciono-me com Ele dialogando – entre outras coisas, claro. É lógico que Ele não me responde em voz alta, e nem vai mandando sinais visíveis durante o caminho, mas conversa comigo por meio do meu próprio pensamento.

Parece que eu mesma chego a algumas conclusões e, no fundo, sei que elas foram “movidas” por Ele, colocadas cuidadosamente na minha inteligência. Deus gosta de se adaptar à maneira humana de ser, para fazer-se mais acessível. Talvez você já tenha passado por isso sem saber: pense numa ideia brilhante que você teve, num “insight”, e não sabe como, porque parece que não é sua.

Desde que descobri que Deus é um ser pessoal e não uma energia, ou força, relaciono-me com Ele dialogando

Provavelmente perguntou-se “como não pensei nisso antes?”. Há uma grande chance de essa ideia, de fato, não ser sua. Mas você pode continuar se apropriando dela, pois sua inteligência também teve participação.

Relações verdadeiras surgem quando conhecemos o interior de alguém

Como disse antes, o assunto que eu tive com Deus até chegar em casa naquele dia foi essa capacidade de se relacionar profundamente com nossos iguais que só os seres humanos temos. Esse “poder” de transmitir os nossos desejos mais íntimos, nossas preocupações mais escondidas, os arrependimentos mais amargos, os sonhos mais inusitados… Enfim, abrir nossa interioridade ao outro.

Os olhos do amor humano

Ninguém pode pisar no santuário da nossa intimidade se a gente não deixar. Basta um “não quero falar sobre isso”, ou simplesmente não demonstrar nenhuma espécie de sentimento, não dar abertura, não tocar no assunto. Sem diálogo não há relação que se sustente. Mas o contrário também é verdadeiro: existem pessoas com quem a gente se sente à vontade para escancarar esse mundo que levamos dentro.

Quando o outro quer fazer parte desse mundo e dividir o seu, surgem as relações verdadeiras -sejam elas amorosas ou de amizade. Quando amamos de verdade uma pessoa, interessa mais que ela nos conheça de verdade e interessa menos que ela goste da nossa aparência. Isso não quer dizer que a beleza não importe nada. Ela é subjetiva, não deveria ser o único motivo para estabelecer ou não uma relação.

existem pessoas com quem a gente se sente à vontade para escancarar esse mundo que levamos dentro

A beleza interna transforma o exterior

E tem mais! Não sei se você já teve essa sensação, mas tem muita gente que parece ficar mais bonita com o passar do tempo. Não porque tenha mudado a aparência, de fato. Quando a conhecemos profundamente, nossa admiração pelo seu interior transborda para o exterior e ela parece mais bela aos nossos olhos.

Somos muito mais do que uma “casca” linda ou feia. Nossa história de vida, por mais difícil que seja, nunca perderá a beleza se tivermos um mundo admirável por dentro. O amor não é cego, apenas vê com maior nitidez a melhor parte do outro. Ainda não somos capazes de ler a mente alheia, mas podemos, sim, “ler” a alma – se o outro deixa e nos dá elementos.

Quando conhecemos alguém profundamente, nossa admiração pelo seu interior transborda para o exterior

Se as pessoas se esforçassem em conhecer de verdade umas às outras, o mundo seria muito mais belo. E era exatamente isso que eu presenciei minutos antes: aqueles dois se enxergavam com os olhos da alma e, talvez, formem o casal mais lindo que já utilizou as escadarias da Piazza di Spagna como cenário fotográfico.