Radicalizar na polarização: precisamos do antiBolsonaro que Lula jamais será

O colunista Gustavo Leutwiler Fernandes autor do livro Africanamente
Gustavo Leutwiler Fernandez
, de São Paulo/SP, formado em Comunicação Social, é agente de viagens de voluntariado, fundador do projeto Trip Voluntária e autor do livro Africanamente. Entre em contato clicando aqui.
Como frear a violência da polarização, esse cabo de guerra no qual a corda é a democracia? A corda que, até outubro de 2018, ajudei a segurar. Gritei para alertar que os da extremidade direita estavam menos interessados em vencer o jogo do que em destruí-lo.

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Apelei ao bom senso de quem estava mais perto do centro e de quem preferia ficar de fora. Implorei que qualquer vencedor é melhor do que aquele que desrespeita as regras, pois sobre este não há controles nem limites e o futuro torna-se, mais do que imprevisível, sombrio.

Então calei. Não porque desisti, mas por ser urgente uma nova estratégia.

O objetivo não é mais vencer, mas garantir que o jogo continue. Larguei a corda e fiquei calado. Lendo. Observando. Estudando. Calado porque gritar e reagir não adiantou até outubro de 2018, não adiantaria depois.

Tudo que consegui foi uma resposta. Uma resposta que não soluciona, mas direciona, porque gera novas perguntas.

É ela: não devemos evitar a polarização. Devemos ampliá-la ainda mais.

Isso porque a polarização do coxinha X petralha, bolsominion X esquerdopata, cidadão de bem X comunista, machistinha X feminazi, não é polarização, é miragem, fumaça, tão ilusória quanto acreditar que Lula livre será o antiBolsonaro.

Nos 50 tons de Bolsonaro tem muitas notas que Lula já vibrava: o apoio das bancadas evangélica e ruralista, as práticas nada republicanas de quem vive da (e não para a) política, o personalismo narcisista e o total descaso com a Amazônia e o meio ambiente.

O coro dos ressentidos

O que não nos permite, contudo, engrossar o coro ressentido de Ciro Gomes, de que Bolsonaro e Lula sejam duas faces da mesma moeda. Impossível comparar a trajetória dos dois.

Um foi presidente por dois mandatos, entregou o governo com 83% de aprovação, tirou milhões da miséria, reduziu a pobreza, permitiu a muitos brasileiros fazer três refeições diárias pela primeira vez na vida e diminuiu o abismo racial no ensino superior.

Tudo isso coroado por uma das mais brilhantes passagens da sua biografia: não se deixou seduzir por um golpe na constituição para viabilizar um terceiro mandato, por mais certa que fosse sua vitória e por maior que fosse a pressão, até mesmo dentro do seu próprio partido.

Por mais contraditória que tenha sido sua gestão, essas são conquistas só ignoradas por quem é intelectualmente desonesto.

Nada comparado a um indivíduo racista, homofóbico, criminoso ao menos por exaltar a ditadura e fazer apologia à tortura, cuja biografia política seria apenas uma piada de mau gosto não fossem as trágicas consequências já sentidas de sua presidência.

Acima de todas as semelhanças e diferenças entre Lula e Bolsonaro, ao contrário deste, que é extremista convicto, o líder petista sempre sofreu críticas justamente pelo motivo oposto: seu irritante e perigoso pragmatismo.

Muitas das críticas a Lula, assim como os processos a que ele responde na Justiça, estão mais ligadas às fotos e apertos de mãos com Sarney, Temer, Calheiros e Maluf do que a uma delirante revolução comunista.

Por tudo isso, Lula não carrega o mesmo veneno que Bolsonaro, mas tampouco é seu antídoto.

A polarização da qual precisamos é a capaz de quebrar o feitiço que gera todas as outras polarizações ilusórias – e ela é mais simples do que parece.

Bolsonaro não acabou com a corrupção, a mamata ou a violência, mas ele exterminou uma farsa brasileira: a do povo cordial e amistoso. Mostramos que sabemos muito bem odiar, dividir, matar e rir de cadáveres, quase sempre pretos e pobres, enquanto seguramos uma Bíblia numa mão e uma pistola na outra.

Mas tem algo da essência brasileira que nenhum Bolsonaro, nenhum Malafaia ou Macedo, que bancada da Bíblia nenhuma conseguiu apagar, e é exatamente o nosso antiBolsonaro.

O antiBolsonaro que precisamos vai ao culto da Assembleia no domingo, toma passe no centro espírita durante a semana, faz piquenique no templo budista, casa na igreja Evangélica e pula as sete ondas de Iemanjá no fim do ano.

O antiBolsonaro está na Amazônia, chovendo amor sempre que ele semeia o ódio, meditando sempre que ele começa a gritar, fazendo poesia com as merdas que ele fala. O antiBolsonaro é Raoní, Monja Coen, Emicida.

O antiBolsonaro é revolucionário porque é altruísta – e não tem nada mais revolucionário do que pensar no outro, ao menos sob um governo extremista e totalitário ou em uma sociedade ultraliberal e individualista.

O antiBolsonaro é o produtor rural que reconhece a importância do indígena na preservação daquilo que é essencial para seu trabalho: o meio ambiente. É o policial que arrisca a vida para prender um bandido e arrisca a carreira para evitar que o bandido seja torturado.

É o pastor que usa o dízimo para reconstruir terreiros destruídos em nome de Jesus por grupos terroristas traficantes e milicianos, autodenominados evangélicos, no Rio de Janeiro.

O antiBolsonaro é bem humorado – e para ter bom humor é necessário inteligência. É ser capaz de entender metáforas e outras figuras de linguagem. É rir do Jesus gay e ficar indignado com problemas reais, como a expectativa de vida de apenas 35 anos para transexuais no Brasil ou a inércia governamental diante do óleo e da lama tóxica que corrói nossa natureza e nossas vidas.

O antiBolsonaro é, também, um paradoxo, porque é um antialguém. É o que renuncia ao papel de líder messiânico para ser o coletivo. É o que deixa de ser um pra ser todo mundo. É cada um de nós, quando formos nós todos um.

• Ajudaram-me neste texto e a entender e sobreviver a 2019 os livros de Hannah Arendt (“Origens do Totalitarismo”), Edward Said (“Orientalismo”) e Eliane Brum (“Brasil: construtor de ruinas”); os podcasts Mamilos, NBW, Xadrez Verbal e Foro de Teresina; e as visitas ao Sheroes Hangout, em Agra, Índia; à aldeia Taquari-ty, durante a Expedição Mata Atlântica; à senzala da Casa dos Contos, em Ouro Preto; e à township de Langa, na Cidade do Cabo, África do Sul.
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